Após semanas de reflexão cheguei a uma conclusão.
Sou um idiota.
juntem-se, observem, oiçam, partilhem... o mundo é nosso!
Os dias, as noites, sobretudo as noites assumiram um ritual.
Um permanente sonhar acordado. Um formigueiro no corpo, mil imagens a passar continuamente pela cabeça; beijos, prazer, química, sintonia, afastamento, frieza, entorpecimento...
A vida continuava, horas a trabalhar ao computador, horas no campo, o cansaço ajudava a dormir algumas horas até que um sábado numa pequena mercearia, o inevitável aconteceu.
Não queria sentir o que senti na outra noite, melhor não queria transparecer o que senti.
Normalmente a tentativa de fazer humor é uma arma de dois gumes...
- Olá, por aqui? Tantos anos e agora pasamos a vida a cruzar-nos, olha que aqui não há peixe fresco - sorri.
"Aqui não há peixe fresco", mau demais, mal acabei de dizer, tive vontade de me esconder.
- Olá, muito obrigado pela dica, continuas muito espirituoso, apesar da barba estar a ficar grisalha.
E riu.
Existem coisas que não se explicam a empatia de duas pessoas que ficam anos sem saber uma da outra, é estranho, surreal e ao mesmo tempo bom, é a única expressão que me ocorre.
- É uma pessoa que conheci faz muitos anos, chegámos a trabalhar na mesma empresa - e acrescentou na tentativa de que a conversa acabasse aí - Faz muitos anos que não o via...
- Ok, agora são quase vizinhos na província e confesso que achei o tipo um bocado o esquisito - disse ele.
- Sempre foi um bocado estranho - e a conversa sobre o Pedro, o tal estranho que passado tantos anos se voltou a cruzar com o seu olhar terminou.
Nessa noite ela esperou que o marido fosse dormir. A cabeça fervilhava, o passado em imagens difusas voltava a ocupar um espaço que ela talvez por engano achou preenchido.
Não era a forma como tudo tinha terminado, doloroso para todos, insano, o vazio enorme, ela nessa noite fria e húmida recordava a forma como se entregavam um ao outro.
A sensação de tempo e espaço a desvanecer, os corpos quentes, ele grande, quente, ousado, ela pequena, intensa, ambos sedentos um do outro.
Era mágico pensou ela e apesar de gostar do marido, que lhe dava conforto, carinho e inclusive tinham um filho.
Tinha tudo mas não tinha amor, adormeceu a pensar nessas palavras.
Ele sozinho, não muito longe, solitário olhava as estrelas...
Nunca um olá me tinha deixado assim.
Petrificado, um segundo parecia uma hora.
- Olá, que coincidência - disse eu.
- O que fazes por aqui? Sítio estranho para nos voltarmos a ver. Este é o Rui, o meu marido.
- Olá Rui - disse eu observando o homem que estava colado a ela, demonstrando claramente que eu era um número fora da equação - Comprei uma pequena quinta e passo aqui a maioria dos fins de semana, virei rústico.
Uma tentativa desajeitada de fazer humor, sem qualquer impacto, teria sido da cerveja ou estaria mesmo nervoso?
- Que giro, o pai do Rui tem uma herdade em São Salvador da Aramenha.
- Marvão é mesmo pequeno - disse eu, continuando a tentar fintar os nervos.
- Bem vou continuar com a minha cerveja, divirtam-se e virei novamente para o simpático empregado do bar e pedi mais uma.
- Adeus João, tirando estares mais velho, estás igual, vemo-nos por aí.
E sorriu. Tantas memórias que me passaram pela cabeça, a primeira troca de olhares, as primeiras palavras, o olhar dela, o meu jeito trapalhão, fiquei a sonhar acordado.
Sempre senti que aquela ferida nunca tinha sido totalmente curada. Mas a vida tinha continuado e eu mais velho e no "fim do mundo".
Resolvi sair. Ir ao castelo, apanhar vento, ver as estrelas. Precisa de esquecer o passado.
Enquanto eu me perdia em divagações naquele café perdido na aldeia, alguém não tinha gostado da conversa.
- Quem era aquele tipo meio estranho?
Após semanas de reflexão cheguei a uma conclusão. Sou um idiota.