domingo, 11 de setembro de 2016

500 anos depois



Lisboa, Novembro de 2022.

Acordei num impulso repentino, demasiado repentino, suspirei, limpei ao de leve o suor que corria no meu rosto e olhei para o telemóvel.

Eram 3h da manhã, sabia por experiência própria que não iria voltar a adormecer.

Pensei, mais um dia em  que iria trabalhar com uma expressão sombria, tanto faz, a maioria dos meus colegas dorme e a expressão deles é normalmente funesta.

Fui à cozinha e enquanto ligava a máquina para fazer o café abri a  janela, estava um vento frio que fazia um sussurro sombrio ao agitar as árvores do pacato bairro de Campo de Ourique.

Dois miudos alcoolizados seguiam junto ao passeio, cantavam, não sei bem o que, fiz uma nota mental, com 38 anos estava completamente desatualizado.

Café a fumegar, mente a fervilhar, mais uma vez o mesmo sonho, o mesmo rosto meio desfocado.

Fazia mais de dois anos, após uma separação e ter passado a viver sozinho, que recorrentemente acordava agitado, num estado díficil de explicar, angústia, curiosidade e sobretudo inconclusivo.

Tudo começou com uma imagem de mim mais jovem, doente, gravemente doente, numa cama. Com o passar do tempo e algum esforço de memória comecei a descobrir mais, mas nunca conseguindo discernir o tempo e espaço, apenas um rosto.

Um rosto jovem, carregado de dor, morena, olhos claros, cabelo liso, um quarto humilde de paredes de barro, o barulho de água, seria um rio?

Bebia o café e divagava tentando descobrir o mistério, o vento fazia o seu trabalho dando à noite um papel sinistro ao qual me habituava.

Ter uma namorada no meu estado atual era um desperdicio, ao final de duas semanas provavelmente ela acharia que era simplesmente um louco.

Contar aos amigos, talvez, não sabia se me iriam compreender, provavelmente achariam que era fruto de demasiada leitura e pouco sexo. Será?

Na verdade precisava de desabafar, de falar com alguém de exprimir o que me inundava a alma, o que não me permitia avançar, estava numa encruzilhada. E logo eu, aquele tipo de pessoa que sempre se intitulou ateu, racional, que só acreditava no que os meus olhos viam.

Duvido, apesar de ser só um sonho parece-me tudo demasiado real, era instintivo, irracional, fugia à lógica. 
Deitei-me no sofá, liguei o leitor de mp3, que por mera coincidência começou com os M83, «In the night, you hear me calling...».

Porra maldito Universo e fechei os olhos tentando não pensar em mais nada.

Algum tempo depois já estava a caminho do duche, mentalmente a preparar-me para mais um dia de pura emoção estática no escritório.

Após um retemperador duche, acabei a picar o meu dedo para medir o meu indice de glicose no sangue.

Sim, sou um vulgo doente crónico, desde os 18 anos que me foi diagnosticada diabetes tipo 1.

Quase morri, sobrevivi e agora é meramente uma rotina, uma medição de glicose aqui e acóla e uma injeção de insulina antes das refeições.

O tratamento da doença tinha progredido imenso nos últimos vinte anos. No passado teria morrido aos dezoito...

Mas deixemos a diabetes, pequeno-almoço a correr, carro, deslocação, trânsito, pessoas zangadas, Lisboa no seu melhor.

Recordo-me era um daqueles dias frios, estacionei perto do Saldanha e segui a pé para o escritório num enorme edifício de dez pisos, espelhado, que concentrava advogados, corretores, instituições financeiras, a nata.

A «nata» que pensando para mim mesmo tinha quase destruído um país com centenas e centenas de anos de história.

Bebi mais um café num pequeno quiosque de rua, o dono, um idoso de nome Jorge era de uma simpatia extrema, perguntava-me constantemente, «Então não mete açúcar no café?».

Entrei no prédio, cumprimentei o segurança disse bom dia a alguns conhecidos e enquanto subia ao oitavo piso no elevador pensei, do que eu preciso é de férias.

Férias, para sair de Lisboa, para tentar dormir, para desabafar e se calhar procurar algumas respostas.

Já tinha pensado na psicanálise. Mas era tão cético a tudo que teria de estar mesmo desesperado para arriscar.



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