quinta-feira, 25 de abril de 2024

Parte 4

 - É uma pessoa que conheci faz muitos anos, chegámos a trabalhar na mesma empresa - e acrescentou na tentativa de que a conversa acabasse aí - Faz muitos anos que não o via...

- Ok, agora são quase vizinhos na província e confesso que achei o tipo um bocado o esquisito - disse  ele.

- Sempre foi um bocado estranho - e a conversa sobre o Pedro, o tal estranho que passado tantos anos se voltou a cruzar com o seu olhar terminou. 

Nessa noite ela esperou que o marido fosse dormir.  A cabeça fervilhava, o passado em imagens difusas voltava a ocupar um espaço que ela talvez por engano achou preenchido.

Não  era a forma como tudo tinha terminado, doloroso para todos, insano, o vazio enorme, ela nessa noite fria e húmida recordava a forma como se entregavam um ao outro. 

A sensação de tempo e espaço a desvanecer, os corpos quentes, ele grande, quente, ousado, ela pequena, intensa, ambos sedentos um do outro. 

Era mágico pensou ela e apesar de gostar do marido, que lhe dava conforto, carinho e inclusive tinham um filho.

Tinha tudo mas não tinha amor, adormeceu a pensar nessas palavras.

Ele sozinho, não muito longe, solitário olhava as estrelas...

domingo, 7 de abril de 2024

Parte 3

 Nunca um olá me tinha deixado assim.

Petrificado,  um segundo parecia uma hora.

- Olá,  que coincidência - disse eu.

-  O que fazes por aqui? Sítio estranho para nos voltarmos a ver. Este é o Rui,  o meu marido.

- Olá Rui - disse eu observando o homem que estava colado a ela, demonstrando claramente que eu era um número fora da equação - Comprei uma pequena quinta e passo aqui a maioria dos fins de semana, virei  rústico.

Uma tentativa desajeitada de fazer humor, sem qualquer impacto, teria sido da cerveja ou estaria mesmo nervoso?

-  Que giro, o pai do Rui tem uma herdade em São Salvador da Aramenha.

- Marvão é mesmo pequeno - disse eu, continuando a tentar fintar os nervos. 

- Bem vou continuar com a minha cerveja,  divirtam-se e virei novamente para o simpático empregado do bar e pedi mais uma.

- Adeus João, tirando estares mais velho, estás igual, vemo-nos por aí. 

E sorriu. Tantas memórias que me passaram pela cabeça, a primeira troca de olhares, as primeiras palavras, o olhar dela, o meu jeito trapalhão,  fiquei a sonhar acordado.

Sempre senti que aquela ferida nunca tinha sido totalmente curada. Mas a vida tinha continuado e eu mais velho e no "fim do mundo".

Resolvi sair. Ir ao castelo, apanhar vento, ver as estrelas. Precisa de esquecer o passado.

Enquanto eu me perdia em divagações naquele café perdido na aldeia, alguém não tinha gostado da conversa. 

- Quem era aquele tipo meio estranho?

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Parte 2

 Entrou acompanhada. 

Vestia uns jeans justos e uma t-shirt branca, a simplicidade sempre lhe caiu bem.

Tinham passado quase dez anos desde a última vez que nos tínhamos visto. 

 Foi uma conversa "estranha", onde devido a ter o coração demasiado perto do cérebro, nunca soube ler nas entrelinhas que quiçá tinha sido a última. 

Demorei tempo a processar, nunca cheguei a compreender, mas o lado pragmático de quem já passou por muito obrigou a que seguisse em frente, ou quiçá para trás.  Fica sempre a dúvida. 

E ali naquele "fim de mundo", onde apenas procurava perder-me em mil pensamentos na companhia de álcool acabei a reviver o passado.

Continua bonita, talvez mais sensual que bonita, o olhar e a expressão idênticos.  Uma tortura olhar sem relembrar o toque e o fogo daqueles lábios colados aos meus.

Sentaram-se numa mesa atrás de mim. Juro que tentei não olhar, resisti meia dúzia de minutos. 

Acabei por olhar, meio tímido, meio despercebido, totalmente tonto.

E ouvi. 

-  Olá...


quarta-feira, 3 de abril de 2024

Caminhando pelo interior - parte 1

Algures no Portugal profundo...

Era noite cerrada, estava aborrecido, com tudo e com nada.  A vida era uma soma de várias derrotas, uma manta de pensamentos e de decisões muitas vezes erradas.

Pernoitava sozinho numa casa térrea,  isolada, com uma vista sobre a planície que transmitia uma sessão de vastidão e paz. 

Apesar do ambiente eu sentia tudo menos paz de espírito. 

Abri o frigorífico, a cerveja tinha acabado.  

Bolas, erro crasso. A cerveja por vezes pode ser a melhor companhia, silenciosa, boa ouvinte.

Eram 22h. Isolado, sem nada para beber, cérebro a mil à hora.

Tinha de sair, estava frio, vesti um casaco,  entrei no carro.

Carro...um jipe velho, daqueles que já passaram por muito, mas que nunca param...

Arranquei,  rádio na m80, destino o café da aldeia. 

O café aldeia, como todos os cafés das pequenas terras, tinha a fauna diária e noturna.

Eu só conhecia fugazmente a diurna. Mas hoje isso ia mudar. 

4km depois, estacionei à porta.  Objetivo beber uma ou duas Sagres,  regressar e descansar de um dia cansativo. 

Entrei, fumo, rostos de pele curtida, olhares, "o que quer o gajo de fora".

Disse boa noite, pedi uma cerveja, concentrei-me na música que passava no pequeno rádio atrás do balcão. 

Tocava o "oceano pacífico", programa de rádio icónico e que fazia daquele ambiente tudo menos romântico um antro de contradição. 

Alheio às conversas, aos sussurros, bebia, absorto nos meus pensamentos e no que me tinha feito procurar refúgio algures no Alentejo profundo. 

Até que ela entrou...