quarta-feira, 31 de outubro de 2012

revelações...mais uma página...


Começou sob a forma de um sussurro, quase inaudível, as recordações eram demasiado amargas para serem ditas de forma leviana. Aproximei-me lentamente “bebendo” de cada palavra que saia da sua boca.
- O meu pai era um comerciante de metais, tínhamos uma loja junto ao fórum e vivíamos nas traseiras, numa casa com um belo Pátio coberto de flores e um pequeno fontanário. Vivia com o meu pai, Máximo, a minha mãe Aurélia e a minha pequena irmã Lúcia.

 Ela fez um pequeno compasso, suspirei, na altura sentia a impaciência da juventude, esperava pela próxima palavra, pelo desenrolar da história, agora velho e tendo perdido tanto sei o que custa falar daqueles que amamos e partiram cedo demais.

Controlando as lágrimas que lhe tentavam sair dos olhos ela continuou o seu relato.

- Havia meses que circulavam várias notícias trazidas por mercadores e viajantes, a Bética sofria as atrocidades dos bárbaros, relatos de villas incendiadas e civitas pilhadas, morte e sangue. Mas o Magistrado, ignorante, dizia que o Imperador iria  enviar legiões e auxiliares para controlar a horda barbara. O meu pai e outros achavam que devíamos aumentar as muralhas, procurar ajuda das outras Civitas, reforçar as defesas. Mas nada fizeram e os dias foram passando e os relatos da próximidade da forma invasora aumentavam de tom. O pai queria mandar-nos para Olissipo, mas a mãe não quis e passado um mês eles chegaram.

Aqui começou o relato do horror, segundo Tibéria eram milhares, a maioria a pé e alguns em poderosos cavalos de guerra gauleses. Vestidos de peles e metal, espadas, lanças, machados e escudos, os seus gritos ecoavam pelas ruas de Pax Iulia. O Magistrado desesperado tentou negociar mas foi em vão, aproveitando as fraquezas de uma débil muralha e uma guarnição fraca e corroída pelo medo.

O seu líder Severiaco era um general germano temível, que na sua juventude tinha servido como auxiliar nas legiões e liderava uma das várias forças de assalto que tinham penetrado na Lusitânia, a sua sede de conquista e vingança contra os romanos tinha deixado marcas visíveis nas cidades das províncias Tarraconense e Bética. Dizia-se que os Suevos fugiam de outros bárbaros os federados visigodos, era o caos.

Ao final de três dias o portão cedeu ao aríete dos Suevos a cidade foi invadida. O fórum tornou-se campo de saque e durante dois dias deu-se o banho de sangue. O Horror ecoou na sua voz, a forma como pai as tinha tentado esconder a morte deste, dos vizinhos, a mãe violada e por fim trespassada, o desaparecimento da irmã. O seu sofrimento ao assistir a tudo escondida por dentro de um pequeno alçapão que miraculosamente escapou ao faro de sede de ouro e sangue dos guerreiros inimigos, deixou feridas que na altura pensei que nunca sarariam.

Durante quatro dias não comeu, não chorou, não viu a luz do sol, apenas quando a atmosfera se tornou silenciosa ousou sair do esconderijo e perceber que o seu mundo tinha ruído e apenas alguns tinham sobrevivido a hecatombe. Viu corpos mutilados, homens e mulheres com quem convivera desde tenra idade empalados, imagens que agora tentava passar para palavras e que geravam uma enorme angustia.

Por fim conseguiu chorar, vieram-me mil palavras que a poderiam confortar, mas não consegui dizer nada, durante um longo momento deixei Tibéria libertar todo o sentimento acumulado dentro dela, a raiva, a tristeza, o sentimento de perda e de viver agora num mundo caótico.

Esperei, deixei que parte do sofrimento a abandonasse,  olhei a nos olhos e sem pensar disse o que ia no coração de um jovem que sonhava recuperar a alma da mulher à sua frente.

- Tibéria – ela secou as lágrimas com as costas da mão e olhou-me fixamente – Sim, Décimus, desculpa mas não consegui, tive de chorar.
Respirei fundo e ganhei coragem.

– Tibéria, um dia vou voltar a fazer-te sorrir…

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