Começou sob a
forma de um sussurro, quase inaudível, as recordações eram demasiado amargas
para serem ditas de forma leviana. Aproximei-me lentamente “bebendo” de cada
palavra que saia da sua boca.
- O meu pai era
um comerciante de metais, tínhamos uma loja junto ao fórum e vivíamos nas
traseiras, numa casa com um belo Pátio coberto de flores e um pequeno fontanário.
Vivia com o meu pai, Máximo, a minha mãe Aurélia e a minha pequena irmã Lúcia.
Ela fez um pequeno compasso, suspirei, na altura sentia
a impaciência da juventude, esperava pela próxima palavra, pelo desenrolar da
história, agora velho e tendo perdido tanto sei o que custa falar daqueles que
amamos e partiram cedo demais.
Controlando as
lágrimas que lhe tentavam sair dos olhos ela continuou o seu relato.
- Havia meses
que circulavam várias notícias trazidas por mercadores e viajantes, a
Bética sofria as atrocidades dos bárbaros, relatos de villas incendiadas e civitas pilhadas, morte e sangue. Mas o Magistrado, ignorante, dizia que o
Imperador iria enviar legiões e auxiliares para controlar a horda
barbara. O meu pai e outros achavam que devíamos aumentar as muralhas, procurar
ajuda das outras Civitas, reforçar as defesas. Mas nada fizeram e os dias foram passando e os relatos da próximidade da forma invasora aumentavam de tom. O pai queria mandar-nos para
Olissipo, mas a mãe não quis e passado um mês eles chegaram.
Aqui começou o relato
do horror, segundo Tibéria eram milhares, a maioria a pé e alguns em poderosos cavalos
de guerra gauleses. Vestidos de peles e metal, espadas, lanças, machados e escudos, os seus gritos ecoavam pelas ruas
de Pax Iulia. O Magistrado desesperado tentou negociar mas foi em vão, aproveitando as
fraquezas de uma débil muralha e uma guarnição fraca e corroída pelo medo.
O seu líder Severiaco
era um general germano temível, que na sua juventude tinha servido como
auxiliar nas legiões e liderava uma das várias forças de assalto que tinham
penetrado na Lusitânia, a sua sede de conquista e vingança contra os romanos
tinha deixado marcas visíveis nas cidades das províncias Tarraconense e Bética.
Dizia-se que os Suevos fugiam de outros bárbaros os federados visigodos, era o
caos.
Ao final de três
dias o portão cedeu ao aríete dos Suevos a cidade foi invadida. O fórum
tornou-se campo de saque e durante dois dias deu-se o banho de sangue. O Horror
ecoou na sua voz, a forma como pai as tinha tentado esconder a morte deste, dos
vizinhos, a mãe violada e por fim trespassada, o desaparecimento da irmã. O seu
sofrimento ao assistir a tudo escondida por dentro de um pequeno alçapão que
miraculosamente escapou ao faro de sede de ouro e sangue dos guerreiros
inimigos, deixou feridas que na altura pensei que nunca sarariam.
Durante quatro dias
não comeu, não chorou, não viu a luz do sol, apenas quando a atmosfera se
tornou silenciosa ousou sair do esconderijo e perceber que o seu mundo tinha
ruído e apenas alguns tinham sobrevivido a hecatombe. Viu corpos mutilados, homens e mulheres com quem convivera desde tenra idade empalados, imagens que agora tentava passar para palavras e que geravam uma enorme angustia.
Por fim
conseguiu chorar, vieram-me mil palavras que a poderiam confortar, mas não
consegui dizer nada, durante um longo momento deixei Tibéria libertar todo o
sentimento acumulado dentro dela, a raiva, a tristeza, o sentimento de perda e de viver agora num mundo caótico.
Esperei, deixei que parte do sofrimento a abandonasse, olhei a
nos olhos e sem pensar disse o que ia no coração de um jovem que sonhava recuperar a alma da mulher à sua frente.
- Tibéria – ela secou
as lágrimas com as costas da mão e olhou-me fixamente – Sim, Décimus, desculpa
mas não consegui, tive de chorar.
Respirei fundo e ganhei coragem.
– Tibéria, um
dia vou voltar a fazer-te sorrir…
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